Descobrir o que fazer a solo. Quando as marionetas indicam o caminho.

Catarina Firmo

sinais em linha - plataforma de crítica e reflexão sobre artes performativas

Maio 2018

Pinóquio tinha as pernas enrijecidas e não sabia mexer-se e Geppetto conduzia-o pela mão para ensinar-lhe a dar um passo atrás do outro. Quando as pernas ficaram mais soltas, Pinóquio começou a andar sozinho e a correr pelo quarto; até que, atravessando a porta de casa, saiu para a rua e fugiu.
Carlo Collodi

 

Quando o marceneiro Geppetto constrói Pinóquio projeta no pequeno boneco de madeira uma forma de não estar sozinho. Desde o momento em que é esculpido, Pinóquio manifesta vontade própria, não se deixando manipular. À medida que o pedaço de madeira vai ganhando forma e vida nas mãos de Geppetto, cresce a sua autonomia e a possibilidade de Pinóquio desobedecer ao seu criador, abandoná-lo e descobrir o mundo sozinho.

OLO. um solo sobre um solo é um espetáculo desenvolvido a partir da experiência de um solo para uma marioneta e o seu manipulador num espaço vazio. Igor Gandra e a marioneta Olo conhecem- se há cinco anos e têm trabalhado neste solo um espaço de duplos e pares complementares. Descobrir o que a marioneta é capaz de fazer e deixar-se levar por ela foi o desafio desta criação do Teatro de Ferro, num projeto iniciado em 2013, estreado em formato Work in Progress no FIMFA'13 e programado na edição do ano seguinte. Numa conversa ocorrida no Teatro Taborda, após o espetáculo apresentado no FIMFALx'18, foram partilhadas algumas etapas do caminho percorrido com Olo, onde a mudança de foco dos solos partilhados entre a marioneta e o intérprete se foram tornando mais claros. A marioneta de 50 cm ocupa o espaço das duas mãos abertas do manipulador. Segundo o seu criador, foi construída rapidamente e em poucos dias estava operacional.

Olo surge em cena coberto por um pano numa mesa de manipulação, onde os objetos cenográficos vão povoando gradualmente o espaço vazio. Quando o pano é descoberto e vemos a marioneta pela primeira vez, os ruídos de fundo que evocavam o vento e o gotejar da chuva dão lugar a um ambiente sonoro onde apenas escutamos a respiração de Olo. Na penumbra e vestido de preto, o marionetista parece despertar a marioneta de um sono profundo, convidando-o a mexer-se e a espreguiçar-se, dando movimento e presença ao corpo entorpecido. Mas é quando surge uma cadeira à escala do seu corpo, que Olo começa verdadeiramente a existir, como se aquele objeto feito à sua medida confirmasse a sua presença e rompesse a sua solidão, ou melhor, lhe permitisse descobrir o que fazer nesse espaço a solo, aprendendo a habitá-lo. Nessa sequência de movimentos, Olo arrasta a cadeira recuando, levanta-a, baloiça, galopa, caminha com ela na cabeça de pernas para o ar, como se esta o encarcerasse. Através do objeto manipulado pela marioneta, reconhecemos a sua presença e começamos a conhecer Olo.

Nesse momento do espetáculo, as palavras proferidas pelo marionetista confirmam o estado de transição: “É preciso olhar como se fosse a primeira vez”. Olo pisa o solo e descobre o que fazer com o corpo e o espaço que habita. A cadeira confirma a possibilidade de se movimentar, de um corpo que deixa de ser apenas matéria para se assumir com expressão e presença. Esta mudança cénica parece ter sido motivada no processo de criação e experimentação, como sugere Igor Gandra: “O humano tentava convencer a marioneta a estabelecer uma relação com a cadeira à escala do seu pequeno corpo de madeira. Foi a partir daí que o humano se apercebeu que era já a marioneta que (se) estava a descobrir enquanto criava, em conjunto com a cadeira, sequências de movimento”[1].

Para além da cadeira, de uma mesa e dos poucos objetos quotidianos que surgem à medida do corpo da marioneta, vão surgindo em palco matérias primas partilhadas entre o marionetista e o pequeno corpo de Olo. Tábuas de madeira, terra e uma enxada são materiais de construção manuseados pelos dois corpos. Um labirinto de tábuas de madeira é projetado, erguido por diferentes mãos que vão simultaneamente construindo e manipulando a estrutura desse novo lugar. É quase irresistível lembrar as personagens de Beckett diante deste espaço minimalista, de percursos e ações circulares, onde uma marioneta e um marionetista exploram diferentes modos de estar a solo, refletindo-se como duplos e pares complementares.

Olo surge sem rosto e no entanto conseguimos perceber as suas expressões e imaginar as suas feições quando está cansado, quando se senta a refletir e a tentar escrever, quando chora ou se diverte. Mesmo na penumbra, o rosto, as mãos e a silhueta do marionetista são visíveis e complementam o corpo de Olo, a sua presença e o seu movimento. Nas mudanças de foco, a marioneta continua a existir, pois embora parada já foi carregada de expressão, conquistou o seu espaço e mostrou-nos o que acontece quando está a solo. A propósito desse diálogo criado entre corpos e matérias, o artista partilha os caminhos que descobriu para manipular e comunicar com Olo: “preencher estes espaços em que não sabemos se a matéria se escuta a si própria – já que jamais poderemos saber o que ela entende quando se escuta a si própria”(Idem, Ibidem).

Esses intervalos de tempo são preenchidos pelo jogo do marionetista, pequenos solos, com mudanças de ambiente sonoro e de objetos. Os solos da marioneta são povoados de música e silêncio, com objetos quotidianos construídos à sua escala. Quando o foco muda para o marionetista surgem ambientes sonoros de ruído e objetos que associamos a materiais de construção e matérias primas. Como se interrompêssemos o estado de ilusão onde as marionetas inevitavelmente nos fazem mergulhar, para espreitar a oficina de Geppetto, num lugar de fronteira, onde se constrói e se começa a imaginar a vida da matéria. Quando ainda é possível imaginar a marioneta como matéria manuseada, plena de expetativas e possibilidades. Antes de a marioneta começar a existir e como Pinóquio desobedecer ao seu criador, indicar-lhe o caminho e deixá-lo a solo.

1. Gandra, Igor Rovisco, «O manipulador é um poeta da matéria» inCorpos no Teatro de Formas Animadas. Móin Móin. Revista de Estudos sobre Formas Animadas v1 n°17, UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, 2017, pp.134-145.