O lado selvagem das coisas. Notas sobre um teatro pós-humano.

Bruno Monteiro

Teatro Nacional de S. João

Outubro 2017

Uma suspeita. Passam-se prodígios aqui. Nas minhas costas, acreditem, ouço um murmúrio. São elas que conversam entre si, conspirativas. Sinto-as adversas, com a malevolência posta sobre a minha carótida. Regresso do ensaio com medo das coisas. Espio-as pelo canto do olho; atrevidas se não olho, quedam-se mudas quando as confronto. Disfarçam os seus intuitos vingativos se me aproximo; se me aparto um pouco, logo elas cuspinham ameaças contra mim. Respiro fundo. Reasseguro as minhas certezas com palavras razoáveis. Não serve de nada. A desconfiança, enfim, está lançada. Quão inofensiva será esta porta? Fecho-a com cuidado enquanto saio. Porque será então que temo que ela me esmague os dedos de repente? Depois de um par de horas na sala de ensaios, as coisas enviam-me sinais de uma existência incógnita. Um lado selvagem que eu ignorava, onde elas cominam protestos contra nós, seus pretensos donos e senhores. Engulo em seco os seus atrevimentos, aperto o casaco apesar do sol e saio para a rua, trocando os pés.

Emerge um sentido agudo de vulnerabilidade perante o mundo quando tremem ou, depois de puídas, soçobram as nossas crenças subjacentes sobre a solidez, a inocuidade e a natureza inanimada das coisas que nos circundam habitualmente. Esta alteração da perceção corrente e desatendida do mundo acompanha o aparecimento de sensações desagradáveis e desconhecidas que correspondem a esse «ambiente de delírio» que Karl Jaspers encontra na sua pesquisa sobre psicopatologia. Foi para responder aos desafios levantados pelo horror das coisas subitamente agitadas ou pelo temor da perda de controlo sobre a estabilidade da matéria que se tentou ordenar a realidade pela repetição de rituais sagrados. Para impor uma ordem segura ao universo houve que traçar limites nítidos entre as coisas e os homens, atribuir-lhes sítios convenientes e apropriados, estabelecer nomes e normas para ambos. Émile Benveniste lembra que o sagrado significava, em latim, tudo o que estava «ao mesmo tempo marcado por uma contaminação indelével e era digno de veneração». O ato de sagração implicava instituir um limite ou um obstáculo que coloque à parte o que se protege, isolando-o de todo o contato por uma interdição rigorosa; só então, «pouco a pouco», o sagrado «toma um sentido positivo: tudo o que está investido de favor divino».1 A religião do teatro têm sido os próprios negócios humanos, restringindo-se as suas cerimónias a eternizar os seus amores, tristezas ou vinganças. O teatro tem servido para consagrar os seres humanos como senhores que governam sobre todas as criaturas, um espaço sagrado em que eles reservam para si mesmos o centro do universo e em que reasseguram o seu estatuto excecional de sujeitos absolutos diante das coisas inertes e insensíveis. Em tais casos, resumindo ou imitando o mundo, o teatro arruma ou conforta a visão antropocêntrica do universo. Pese as semelhanças aparentes, são estas garantias de conforto que cedem durante este espetáculo de marionetas. O teatro de fantoches subverte estes dogmas que tornaram o palco num espaço sagrado do humano. Não temos aqui um espetáculo que assevera e santifica as nossas crenças sobre a omnipotência humana. O ritual teatral tem vindo inadvertidamente a representar o império humano sobre o mundo. Em sentido oposto, este teatro de marionetas é um teatro pós-humano. Neste espetáculo, o palco volta a ser um sítio perigoso e inquietante que desarruma a ordem de uma realidade centrada sobre os humanos. Nele, são as coisas que se revoltam e se insurgem contra a autossatisfação nascida da consciência equívoca que os humanos têm de que são eles os protagonistas diletos da criação.

A inquietante familiaridade da sala de espera. Estamos numa sala de espera. De um aeroporto, se acrescentarmos detalhes. Trata-se de um cenário vulgar para todos nós que partilhámos a experiência da passagem por estes lugares de trânsito. Ninguém vai a uma sala de espera, toda a gente passa por ela. Em suma, um limbo. Sem promessas de salvação, todavia. Estes locais assépticos e descaracterizados são, hoje em dia, a epítome de uma civilização submersa por medos e paranoias que ela própria retroalimenta com a sua ânsia de segurança. Afligidos pela sofreguidão de um controlo absoluto sobre a incerteza, estes locais definem-se, portanto, pela obsessão com que inspecionam e supervisionam os seres humanos. Temos então as condições necessárias e suficientes para uma contínua superação das «medidas de segurança». Todas as evidências da ausência de perigo imediato são apenas, pela exacerbação deste raciocínio, tantas outras provas de que as ameaças permanecem disfarçadas, apenas mais bem camufladas do que esperado. Não se revelando elas por si mesmas, torna-se necessário, em casos extremos, supor as ameaças que estarão ainda latentes. Observados até à exaustão, os humanos à espera resignam-se a este incremento de vigilância ou então arriscam-se a comprovar, por moto próprio, a presunção de perigosidade que tentavam desmentir com a sua recalcitrância, se conduzida de modo mais atabalhoado. Nos aeroportos é arriscado tentar mostrar que se tem razão. Mais vale, assim parece, aguentar com paciência. Não se passa o mesmo com as coisas que aqui se obstinam contra a ambição de controlo. Elas saltam impacientes das malas que as tentam encerrar, escapam desembestadas aos dispositivos que as tentam sondar, espraiam-se desordenadas sobre um terreno que se tenta sujeitar a um plano rigoroso. Espaço «isótropo» que, como lembrava Maurice Merleau-Ponty, constitui esse espaço puramente exterior e homogéneo «que o pensamento sobrevoa sem ponto de vista»2, a sala de espera confronta-se agora com a subversão das coisas que pareciam, até então, incrustadas sobre ela com firmeza. Guia e suporte da nossa experiência, este suposto «espaço verdadeiro, único e objetivo» constitui mais uma tentativa de normalização que «garantia ao homem (…), contra o delírio ou a alucinação, [que] os objetos permaneciam perante ele, que eles guardavam as suas distâncias, e como Malebranche dizia a propósito de Adão, que eles não o tocavam senão com respeito».3 Neste palco, digo: nesta sala de espera, a revolta das coisas é um protesto ontológico. Nem os objetos permanecem quedos, nem se conservam obedientes, nem abdicam de interpelar desrespeitosamente os humanos. Este teatro de marionetas insufla vida a coisas que, a começar pelos próprios fantoches, deveriam permanecer inanimadas e silenciosas. Até porque chega a desmembrar a própria disposição física do palco, este espetáculo desafia a ilusão de um invólucro inquebrantável para uma ordem do mundo submissa e disposta em torno do ser humano. Quando os humanos se calam, as coisas protestam.

Fantoches, fetichismo e ciborgues. O teatro de marionetas vai, por diversas maneiras, transformar o estatuto das mãos. Longe de serem um mero apêndice do corpo que o ator usa para completar uma interpretação, aqui são as mãos que constituem o centro da ação. À margem do corpo, as mãos atuam por vontade própria. Tornadas em símbolos mais do que em instrumentos, as mãos são veículo para uma representação do mundo; são elas que, em idioma sucinto e austero, propõem uma leitura ao espetador sem tombarem em incontinências retóricas. Nestes pictogramas em carne viva temos um instigador da imaginação, sugestionando-se o espectador para uma recriação de sentido tão mais necessária e ampla quanto mais concisos são os movimentos da mão. Para ver teatro, basta ver o que se tem diante dos olhos: atores que se movem sobre o palco em movimentos, gestos e palavras com que nos identificamos imediatamente e que compreendemos de maneira empática. O teatro de marionetas não admite que se vejam apenas as evidências diante dos olhos. Para ver teatro de marionetas exige-se e sugestiona-se do mesmo passo a implicação ativa da imaginação do espectador. São as mãos como miniaturizações do corpo humano que, transformando este em suporte ou em palco, questionam por completo o estatuto de subalternidade que lhes atribuímos a elas – e às coisas que as acompanham, como a vareta ou boneco. Por outras palavras, o corpo do ator surge aqui como um satélite dos objetos manipulados. Quando lida com os bonecos e restantes objetos cénicos, o ator sujeita o seu corpo a essas coisas que manipula para lhes atribuir o ponto focal da atenção dos espectadores. Desse modo, todas as coordenadas da presença do ator em palco se alteram para se subordinarem aos movimentos das mãos e das coisas. Em suma, invertem-se as usuais hierarquias de causalidade entre sujeito e objeto. As coisas e as mãos aparecem aqui em circunstâncias de possessão, aparentemente imbuídas com uma vontade estranha e sobranceira ao corpo que as segura. No teatro de fantoches, o humano perde a sua centralidade como medida de todas as coisas, melhor: aparece subjugado temporariamente por coisas que criou, como sucedia com a reverência pelos tótemes ou com os transes espoletados pelas máscaras envergadas pelos feiticeiros. São os limites estanques entre humanos e objetos não-humanos que se veem subitamente abolidos. São as coisas que aparecem sobre o palco e se dirigem a nós.

Olhando para tempos mais recentes, este espetáculo confronta-nos também com esse estranho poder dos objetos sobre os humanos, como sucede, para nos restringirmos a um só exemplo entre muitos, com os telemóveis. Pequenos ídolos, os telemóveis não só absorvem a nossa atenção quotidiana, como são os canais de acesso privilegiados para os nossos avatares virtuais, aspirando a nossa subjetividade para estas representações desmaterializadas. Seremos servidores das coisas que criámos? Uma analogia entre o «mundo religioso», em que os «produtos da mente humana parecem dotados de vida própria», e o mundo das mercadorias, em que sucede o mesmo aos «produtos da mão humana», serviu para Karl Marx apresentar a sua conceção do fetichismo da mercadoria em regime capitalista.4 Por tornar esta verdade ainda mais patente em palco, este teatro de marionetas mostra como insistente nitidez a escravização dos homens pelas coisas que os possuem quando eles as possuem. A posição aparentemente periférica do corpo do ator por comparação com os objetos manuseados pelas suas mãos pode ser vista, em antecipação distópica, como prenúncio do desenlace desumanizador que palpita sob o atual mundo das criações humanas. Seja porque remete a existência dos humanos para os bastidores de um palco agora ocupado por coisas que têm um destacado protagonismo, seja porque sujeita os humanos a serem recipientes de um dispositivo que, inicialmente intencionado para a sua segurança, se tornou ele próprio em vetor de opressão, temos neste espetáculo a visão de um universo que dispensa a humanidade como «medida de todas as coisas». No início deste texto, sugerimos que o teatro de marionetas abria caminho para um teatro pós-humano. Desafiando as fronteiras rígidas entre humanos e objetos, alterando a disposição «natural» do seu corpo para conceder todo o relevo aos utensílios ou então destacando as suas próprias mãos do corpo que as suporta, os atores do teatro de marionetas colocam-se nas áreas limítrofes do conceito de «ciborgue». Usado por Donna Haraway como designação de «criaturas híbridas, compostas por organismo e máquina», o ciborgue nasce sobre esta fronteira como «monstro» que desafia uma pertença exclusiva. Monstro significante, todavia, pois ele transporta com o seu modo de ser «signos de possíveis mundos».5 Mundos possíveis, sem que saibamos se estamos a pender para a alternativa otimista ou pessimista. No teatro de marionetas, o ator constitui uma espécie de ciborgue artesanal, alvitrando um outro teatro que, relativizando de maneira promissora a assunção de antropocentrismo subscrita inconscientemente por um certo teatro corrente, arrisca também, ao realizar uma projeção aumentada da animadversão das coisas, anunciar ou mostrar um mundo em que os humanos não só veem comprometida a crença humanista sobre a sua centralidade entre a criação, como traz em si um deslizamento para um império governado por coisas erigidas em deuses.

1. Emile Benveniste, Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Tome 2: Pouvoir, droit, religion. Paris, Editions du Minuit, 1969, p.179-207.

2. Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Éditions Gallimard, 1945, p.282.

3. Idem, Ibidem, pp.335, 337.

4. Karl Marx - Friedrich Engels - Werke, Das Kapital, Band I, Erster Abschnitt, Berlim, Dietz Verlag, 1968, p.86.

5. Donna Haraway, Simians, cyborgs and women. The reinvention of nature. New York, Routledge, 1991, pp.1, 2.