De Coisas e Homens

Saguenail

Julho 2015

Desde logo no título, o espectáculo do Teatro de Ferro ostenta contradições, portanto afirma um funcionamento dialéctico.

Objecto Encontrado Perdido a priori conota a ideia de escombro e recuperação, de bagunceira e de entulho, ou mesmo de lixo. O título anuncia matéria heteróclita. Ora o espectáculo caracteriza-se justamente pelo seu rigor e pela sua coerência pois que a selecção dos acessórios constrói uma forte unidade e o diverso revela-se homogéneo.

Por outro lado, do estrito ponto de vista gramatical, a dupla Encontrado Perdido, que adjectiva por antilogia Objecto, é composta de particípios passados que supõem um agente e uma história: alguém o perdeu, alguém o encontrou. Ora, embora a ronda dos actores exiba, efectivamente e à vez, os achados desencantados por cada um, os objectos do espectáculo, à excepção dos últimos que fecham a representação e aos quais voltaremos, apresentam-se como se nunca tivessem tido uso, como que acabados de inventar, como que por si próprios encontrados. Aquilo que perderam é o sentido, que decorrerá da função que venham a encontrar.

Assim, cada objecto simboliza uma perda e um achado. A perda pode ir até à forma e a matéria: os intérpretes, a dado momento, brindam com copos invisíveis. E o achado implica utilizações inéditas; uma roda pode servir de mala de mão…

Por um lado, os objectos antropomorfizam-se: os fragmentos de uma ossatura não servem para reconstituir um esqueleto, antes se autonomizam – uma articulação permite-lhes deslocarem-se e um buraco no osso da bacia confere-lhes o olhar. Por outro lado, comandam as atitudes humanas: a bacia reclama ser transportada à cabeça e faz da mulher uma lavadeira.

A diferença entre objectos e humanos tende a apagar-se, ou mesmo a desaparecer: uma máscara branca é da natureza de uns e de outros.

Os humanos são condicionados pela mesma cadeia de fabrico que traz e leva os objectos. Além do moinho que comanda a deslocação do banco no início do espectáculo, há um outro, invisível, que leva os actores, à vez, até à ribalta para apresentarem o «seu» objecto, segundo um movimento de carrossel regular a girar no sentido dos ponteiros do relógio. À máquina do tapete responde o imperceptível rastejar da caixa de madeira.

O pessimismo inevitável da constatação – a perda inicial dos sentidos e das funções dos objectos desagua no questionamento do estatuto dos humanos e sua possível substituição por máquinas e bonecos – é combatido e temperado pelo humor: após uma evocação burlesca dos «templos modernos» de Chaplin onde a regularidade do movimento do tapete rolante escangalha as atitudes dos intérpretes obrigados a correr para impedir a queda dos objectos – «o mecânico acrescentado ao vivo» que, segundo Bergson, define a essência do humor. Os últimos objectos são taças desportivas, troféus tão intrinsecamente portadores de uma história de glória que o simples facto de serem brandidos acrescenta a quem os segura um eco de triunfo, que se revelam irremediavelmente destinados ao entulho – o passado, por muito glorioso que seja, remete para o simbólico, logo para o irrisório; já não se cuida da História, deita-se fora – e se amontoam inutilmente, anonimamente, no final da cadeia.